Mameleiros e mamiletes, bem-vindos ao Mamilos, o nosso espaço de diálogo de peito aberto. Eu sou a Cris Bartz. Eu sou a Juvalauer e esse é o seu ritual de todos os anos. Há 10 anos a gente passa o Natal com você, né? De novo esse ano e você vai entender bem melhor agora de qual a importância disso. uma oração antes da refeição para agradecer pelo alimento, jogar arroz nos noivos depois da cerimônia de casamento, um brinde antes de beber, festa de aniversário.
Jantar na casa dos pais todo primeiro domingo do mês. Amigos secretos de final de ano com os amigos do trabalho. Vestir uma roupa bem bonita pra sentar na sala da casa, enquanto espera da meia-noite pra comer aquela ceia de Natal, incluindo arroz com passas. No programa de hoje, a gente vai aproveitar o clima natalino para conversar sobre a importância dos rituais na nossa vida. Para que servem? O que eles significam?
Nossa intenção é entender como os rituais ou a ausência deles influenciam nossas identidades, as nossas relações e as nossas sociedades. Para isso, a gente trouxe, não dois convidados, dois grandes amigos. Um antropólogo que estuda as tradições e práticas culturais em diferentes contextos. E o terapeuta quentinho do coração, que observa a aplicação dos rituais nas dinâmicas emocionais e psicológicas das pessoas. Por favor, se apresentem para os nossos ouvintes, nem sei por quem começar.
Michel, se apresente para os nossos ouvintes, quem é você na fila do pão? Olá, eu sou Michel Acoforado, antropólogo, pesquisador e um interessado e um curioso pela vida. E feliz demais de poder compartilhar um pouquinho, não só das coisas que eu tenho visto por aí com vocês, mas também com esse psicólogo, que é meu psicólogo preferido, hein? Porque toda vez que ele fala, ele aquece meu coração.
É isso, é o moço da carta de um terapeuta. Ale Coimbro, por favor, se apresente para os nossos ouvintes. Quem é você na fila do pão? Eu sou... eu sou amigo. Eu sou amigo, eu sou psicólogo, eu sou escritor, sou podcaster, sou professor, mas, sobretudo, eu sou gente que gosta de gente. Então, eu sou mamileiro, eu sou mamilete, eu sou tudo aqui nesse programa. E eu amo vocês há 10 anos. E Michel Coforado foi a melhor...
a melhor pessoa que eu trouxe para o meu cercadinho em 2024. Foi a pessoa que eu trouxe, eu vi esse cara e falei... ele vai ser meu amigo, virou meta. Eu falei a mesma coisa. Foi meta de ano novo no meio do ano. E aí eu realizei a meta. Agora eu quero... Isso aqui é o jeito de dobrar a meta. Fiquei com ele para o Mamilos. Maravilhoso. Ele é meu amigo. Vocês não levem em consideração o que ele está falando, não.
Michel, vamos começar? Como eu, tadinha, fiz só administração, a primeira vez que eu fui entrar em contato com antropologia foi só na pós. Primeira aula de antropologia. E eu fiquei encantada com a aula sobre rituais. Essa frase que a professora falou nunca saiu da minha cabeça. Se você estudar qualquer comunidade humana, de qualquer tempo, qualquer cultura, qualquer localização, tudo varia. Menos o fato de que todas sempre têm rituais. Por quê? O que tem os rituais que eles são tão essenciais?
essenciais. Que bom, Ju, que você só teve aula de antropologia na pós, porque a antropologia é enfeitiça, hein? Ela me enfeitiçou um pouco cedo, dominou a minha vida. Você já estava um pouco mais madura e aí conseguiu fazer as melhores escolhas. Mas a grande sacada... tem na nossa vida, é que eles conseguem organizar socialmente um conjunto de coisas que estão separadinhas aí, espalhadas, pela vida cotidiana de uma forma geral.
O ritual tem um papel importante porque, em primeiro lugar, é um evento comunicativo. Ele conta para todo mundo que está presente naquele evento o que está acontecendo. Quando você casa, você muda de status. E aí, quando você não é convidado pra festa de casamento, você vê a aliança no dedo do outro ou da outra, você fica em dúvida, casou ou não casou?
Quando você é convidado para a festa de casamento, ou vê no Instagram, ou a fulana muda a foto dela de noiva, lá do perfil do WhatsApp, o que for, você é comunicado de uma vez só, naquele momento, que aquela pessoa virou outra coisa. Só que os rituais funcionam muito mais do que um outdoor, porque o outdoor comunica também. Os rituais fazem a gente introjetar essa mudança. A gente, depois que passa por um ritual, a gente transforma a nossa cabeça e transforma o nosso corpo.
a partir dessa coisa que o ritual está comunicando. Então, casamento. O pessoal está querendo abrir mão agora do ritual funerário, né? É importantíssimo. Alexandre entende disso muito melhor do que eu. A gente não consegue elaborar o luto com a mesma força, com a mesma eficácia, sem participar dos rituais mortuários, né? Sem ir lá, sem chorar pelo morto, sem ajudar a enterrar.
sem carregar o caixão. A gente não consegue entender que virou pai se você não for presente no momento do nascimento do seu filho. Então, esse número absurdo de abortos paternos que a gente tem, para além das outras questões... é também da ausência dos pais no processo, não só da gestação, mas também do nascimento dos filhos. Eles demoram, para além de todos os dilemas, e aí tem um bocado de gente que não presta junto, mas para além de todos os dilemas, as pessoas demoram a entender também.
Os situais são úteis para a gente porque eles reorganizam a sociedade e deixam todo mundo na mesma página. Por isso eles são importantes. Pois é, Ale. E aí quando a gente olha isso como grupo de sociedade... E aí a gente vai para cada um dos indivíduos, né? O Michel já tocou que nascimento e morte acontece para todos os humanos, né? Como é que esses rituais, os rituais que a gente conseguiu estabelecer, vão nos ajudar a processar emoções?
O que acontece no campo das emoções? Eu acho que a gente está com uma grande obra cultural neste momento nos dando essa pista, porque o filme Ainda Estou Aqui. A pessoa some. Sumiu. O que aconteceu? Eu sei o que aconteceu, mas eu não consigo realizar o que aconteceu. Como que isso mexe com as nossas emoções, a sanidade e o senso de caminho?
do para onde ir. Nossa, adorei o senso de caminho. O bom de vir no Mamilos é que a gente começa a responder uma pergunta a partir da narrativa que vocês criam para a pergunta, que é maravilhoso. que já reinventa o que a gente pensa, o que a gente sente, o que a gente vai dizer. Isso é ser mamilos. Isso aqui é um ritual de renarração da vida. Então, assim, primeiro vamos pegar o exemplo do nascimento e da morte que o Michel trouxe.
O humano teme as duas coisas da mesma forma. A gente reage com a mesma cara de horror na hora que vê um bebê nascer e na hora que vê uma pessoa morrer. Porque são circunstâncias que transcendem a nossa capacidade cognitiva. Então tem um transbordamento da alma nesses eventos.
E ritualizar ajuda a gente a dar um pouco de continência para essa sensação tão avassaladora desses rituais. Então é importante mesmo que a gente guarde em qualquer cultura... os rituais de nascimento e morte, que eles sejam invioláveis, que eles sejam múltiplos, que eles possam ser adequados à cultura de cada família, de cada comunidade.
que exista liberdade de se construir o ritual de maneira que ele não se esvazie. Porque um dos riscos do nosso século é a pasteurização dos rituais. E isso é uma tragédia. Porque a gente passa a viver as coisas e a gente fica, depois dos rituais, igual aquela música do Arnaldo Antônio, socorro, não estou sentindo nada. sendo que a função do ritual era o contrário, era fazer a gente se conectar com mais profundidade com a transição que está ali em curso. Então os rituais, eles nos apoiam.
a fazer uma compreensão mais profunda de que viver é transicionar o tempo inteiro. Os rituais vão dando essa consciência, porque a gente perde essa consciência de que a gente está transicionando o tempo inteiro. E os rituais vão dando. Alguns são naturais, que têm a ver com o desenvolvimento do corpo. Por exemplo, os rituais todos de envelhecimento do corpo são processos inevitáveis pelos quais nós passamos.
E tem alguns outros rituais que são dados pela cultura junto com esses. E tem outros que são só inventados. Por exemplo, o ritual do casamento, como o Michel falou aí. Mas a gente vive o tempo inteiro essa percepção. que a gente está deixando de ser uma coisa e passando a ser outra. E quando a gente faz essa comunicação, a gente começa a fazer um processo psíquico que a gente chama de integração. Integrar é você juntar pedaços seus.
que ficaram meio soltos no caminho. Então, quando você vive um ritual, geralmente você agradece antepassados, então você volta para o passado, você fala... da caminhada que te trouxe até ali. Então você integra a sua história até ali. Você está presentificado naquela cena, você se prepara para aqui, você arruma uma roupa, você vai no salão, você pensa na arquitetura do cenário daquele ritual e tudo mais.
você projeta os próximos passos do futuro. Então, os rituais são elementos da vida e da cultura que realmente fazem a gente sentir o tempo como uma espiral, que eu acho que é como ele deveria ser sentido sempre. e não como uma linha reta. O tempo inteiro estamos habitando esses três tempos da vida, o passado, o presente e o futuro. O ritual serve para isso, do ponto de vista psíquico.
Sensacional. E aí, você estava falando do esvaziamento, a gente ainda vai chegar nisso, que eu super me interesso por essa questão, mas a gente também tem um negócio no tempo moderno de achar que a gente inventou tudo, né? né, tudo a gente inventou eu sou muito fascinada por ver quanto do que a gente faz hoje tem eco de muito
muito, muito, muito tempo atrás. E eu queria que você falasse um pouco isso, Michel, de quanto que a gente empresta nesses situais de final de ano, celebrar o Natal, celebrar o Réveillon, reunir a família, trocar presente. milhares de simpatias que a gente tem, quanto que a gente tá emprestando de outros tempos e de outras culturas, porque no final é uma concha de retalhos, né?
Legal isso, e acho que tem um aspecto importante. A gente não pode esquecer o passado quando está pensando em rituais, tá? Porque senão a gente pasteriza o ritual como o Alê estava colocando, né? Eu acho que tem uma dimensão super importante que o ritual consegue ter dentro de um mesmo evento passado, presente e futuro. Ele é quase uma máquina compressora de tempo.
E acho que é tão bonito a gente entender que o ritual tem o passado, presente e futuro, sobretudo no dia, na organização do dia. Não abram mão do preparo de um ritual. não compra a ceia pronta, não compra o casamento da novela que a fulana fez, que diz, eu quero o vestido igual, a coxinha igual, as flores iguais, porque a gente precisa fazer o ritual para o ritual fazer da gente outra coisa.
Esse é um aspecto importante. E por que ele é uma mistura dessas três coisas? O primeiro ponto é que a gente está lidando com uma dimensão do passado que todo ritual, para ter sentido social, ele precisa lidar com uma dimensão da tradição e da memória. Então, cada Natal de cada família, apesar de ser similar, é diferente? Porque você está contando com o período de Natal que vovó fazia e vovó já foi há muito tempo. Você está contando...
com a história que vovó contava, com o tiozinho contava e por aí vai. Então, essa organização do passado é fundamental. E de um passado que não tem origem. Essa que é a grande sacada, né? Não caio nessa de achar que o Papai Noel veio da Noruega... da Dinamarca, foi inventado na Polônia, sei lá onde. Ele foi inventado, e ponto. Porque tudo que perdura, a gente precisa pagar a origem para conseguir reatualizar os símbolos. Retualizar.
A todo momento. Porque se a gente estivesse fazendo com o Papai Noel a mesma coisa que a gente faz, sei lá, com o champanhe... ou com queijo parmesão, onde tem um dono que diz a origem é essa, a gente não poderia estar dando conta de atualizar o Natal e ele certamente morreria. Agora há uma dimensão do presente que é fundamental também, que é a atualização. desses símbolos, para eles continuarem vivos, a gente precisa decidir que esse ano a gente vai abrir mão do tender.
E vai botar, sei lá, uma torta salgada porque os convidados mudaram, porque a minha nora que entrou para a família agora gosta, porque o fulano que não gosta de passas no arroz vai nos obrigar a abrir mão disso. Então, atualização do presente. Mas tem uma outra dimensão, que é dessa máquina de compressão do tempo, que a gente precisa dos rituais para inventar futuro. Sem rituais, a gente não consegue pensar e imaginar futuro. E o futuro...
ele surge desses momentos onde a gente está fazendo essa atualização mesmo do que a gente viveu, a gente está recontextualizando os símbolos e a gente está podendo imaginar junto o que vem para frente. Então, eu diria que tem muito passado, tem muito presente, tem muito futuro. em cada encontro desse ritualístico. Pois é, Ale, e a gente é bom nisso, né? Porque a gente faz pizza de picanha, sushi de morango, se tem uma...
coisa que a gente sabe fazer é essas atualizações de uma maneira muito peculiar, vamos lá. Agora, a partir do... código comum de uma cultura, cada família, grupo de amigo, eles vão criando essas tradições, eles vão criando esses rituais. Como é que se cria tradição? E qual é o papel dessa tradição nas relações? Olha, se a gente for pensar nos rituais de família, esses rituais são uma negociação coletiva de narrativas individuais sobre o que seja o ritual.
Então o tempo inteiro, na hora que a gente vai negociar lá como vai ser o Natal, cada um vai ter o seu conceito interiorizado do que seja a festa de Natal. Então vai ter a pessoa... mais transgressora, a pessoa mais conservadora, não, mas tem que ter, sei lá, o pré-sepio, a pessoa vai falar, não, mas e as religiões de matriz africana, que não estão no pré-sepio, tá, mas é sobre Jesus, sabe, mas eu sou de matriz africana.
Então, isso é uma negociação coletiva. É obviamente que, para fazer sentido, essa negociação coletiva tem que... Em primeiro lugar, construir um espaço de segurança para as pessoas poderem discordar até chegar num caminho comum. Se o ritual, como acontece em muitas famílias nessa época do ano, o ritual é uma imposição...
você começa a construir muita ambivalência em relação aos rituais. Então, muitas famílias questionam por que as pessoas estão menos aderentes a rituais. Nós temos tido muito mais espaços de... de fala, de negociação sobre as nossas indignações, isso está mais posto no mundo social. E isso está vazando para dentro de casa. E as crianças, os adolescentes, os adultos, os agregados, as pessoas de dentro da família, estão parando para discutir se aquilo faz sentido ou não.
Em algumas famílias isso cola e produz uma diferença, em outras famílias isso recebe o que a gente chama de meta-regra, que é tipo uma operação... Então vem o patriarco, a matriarca e fala isso aqui não é uma democracia, isso aqui é uma família. Essa frase é do Miguel Falabella, da peça A Partilha, que eu adoro essa fala. Então...
Chega uma pessoa e fala assim, não, isso aqui é o ritual, tem que ser assim. Então, as famílias têm que se haver com a tensão que se origina antes do ritual acontecer, pela forma como ele é construído.
E aí, muita gente procura terapia nessa época do ano, assim, eu sou terapeuta de família e casal, vocês não têm ideia da quantidade de demandas que a gente tem. É uma loucura, é uma loucura, porque as tretas... fim de ano abundam e tá todo mundo querendo o que que eu vou fazer no Natal por causa de tal questão. Então, essa idealização desses rituais de fim de ano faz com que as pessoas acreditem que em nome do ritual você precisa silenciar toda e qualquer divergência.
E isso pode ser justamente minimizado se essas divergências forem materializadas na confecção do ritual. Se eu estiver junto, pensando o ritual de Natal, junto com aquele meu tio que eu detesto, mas que eu quero tolerar por causa da minha avó... Porque é importante para mim que a minha avó se sinta bem no Natal, eu estou lá em lealdade a ela. Então, se eu consigo fazer um planejamento dessa festa junto com o meu tio, em que ele me perceba...
e eu também consiga colocar algumas coisas para ele sobre a festa, sobre a noite, isso vai relaxar um pouco, distensionar um pouco a tensão do momento. Então o ritual, na verdade, acontece muito antes. E esses planejamentos desses rituais de fim de ano, eles tendem a ser muito obsessivos. E onde tem muita obsessividade, tem mais treta. Ale...
Eu vou guardar essa sua fala, porque eu tenho uma pergunta muito específica para ela, porque eu acho que a gente, sobre essa obsessão que a gente fica, que a gente confunde essência e forma, põe na geladeira, daqui a pouco eu vou tirar. Pra trazer eu, Michel... Mas essência é forma, hein? Só pra me meter na conversa de vocês dois aí. Depois vocês me convidam. A gente te convida. Deixa na geladeira daqui a pouco que a gente traz. Tem uma coisa que eu queria trazer antes, que é assim...
Tem um pouco... Ele fala que os rituais vão marcar o pertencimento, o significado do tempo e estabilidade. E que muito do que a gente vive na modernidade está avacalhando com o ritual. Eu e a Cris, a gente cita pra caramba aqui o religião pra ateus do Alain de Botton. Que ele também traz esse molho. Que é assim, beleza galera, você não quer mais ir pra igreja, mas aqueles rituais lá organizavam uma série de coisas. Você vai colocar um...
pequeno lugar. Vai lá, criativo. Né? Nossa, como você é criativão da massa. Eu não preciso do Natal. Vai ser um dia qualquer pra mim. Eu não preciso do Ano Novo. Eu quero... A gente está com mais rituais, menos rituais, rituais mais fracos. Como que você vê o impacto da vida que a gente leva da modernidade na importância dos rituais para a gente hoje? Não tem a menor dúvida que a gente tem menos rituais hoje, tá? Mas como a gente não consegue viver sem rituais, a gente está fazendo algo pior.
A gente está transformando, está saindo ou fugindo da festa de Natal e acreditando que o skincare com 12 passos coreano vai resolver o teu dilema com a vida ou com o mundo, de uma forma geral. E não vai, tá? Porque, infelizmente, viver em sociedade, ela cobra da gente alguma capacidade de pactuar com o outro. E os rituais são fundamentais, porque eles pressupõem...
que você vai ter que entrar em contato, em diálogo e em interação com os outros para inventar esse modelo de sociedade que você quer. Nem que seja para manter as coisas como estão. Os antropólogos gostam tanto de rituais que eles se metem às vezes a estudar rituais que... fingem que tudo acabou só para que as coisas continuem mais ou menos do jeito que está. O carnaval é um desses exemplos. A gente tem uma sociedade brasileira marcada por intensas hierarquias.
O Roberto da Mata, que é um antropólogo, vai dizer que, olha, se o Brasil não tivesse o carnaval, ele explodiria, porque as pessoas não conseguiriam viver com tamanha distância no dia a dia. Então a gente tem cinco dias onde a gente para a sociedade, inventa ela de outra forma, cria uma igualdade falsa, mas que todos nós acreditamos, ou se não invertemos hierarquias. para depois de quarta-feira a gente voltar a ser igual, ou igual a gente era antes. O ritual é importante.
para poder marcar que apesar das coisas estarem gerando sofrimento, você tem ali alguns diazinhos que dão um respiro. Só que olha o dilema. A gente precisa dos rituais, sobretudo para inventar nossa própria trajetória. Porque os rituais que a gente, em geral, reclama são os rituais junto com os outros. Porque você sempre se acha o alecrim dourado.
da festa, né? Então, o tio que é péssimo, a minha prima que é insuportável, o filho de não sei quem que é muito chato, você é o maravilhoso. E aí, o melodo neurótico, o problema são sempre os outros, você é sempre o maravilhoso.
A Lê sabe disso muito melhor do que eu. Mas o ponto aqui é que os rituais são importantes na nossa trajetória individual. Repara na nossa vida e compara com a vida dos nossos pais e dos nossos avós. As gerações anteriores... É óbvio que você tem ali um quê de prisão, mas elas estavam atravessadas, desde o momento que nascia até o momento que morria, numa série do Rituais do Tem Que Ter.
Então, chegava-se num determinado momento, fulano tinha 18 anos, tirava a carteira de trabalho. Nós ouvimos isso de algum modo, tem que tirar os documentos, né? Agora as crianças já nascem com documentos. A gente não tinha documento. A gente só tinha certidão de nascimento. Agora a criança já tem passaporte, CPF, identidade. Ela não tem os 18 anos como momento de tirar o documento.
Quando fulano tirava o documento, tinha ali no balaio carteira de trabalho. Ele precisava arrumar um trabalho, porque quem tinha carteira de trabalho tinha que ter trabalho. Depois que ele tinha uma determinada idade, se formou no ensino médio com formatura, ele entrava na faculdade se ele vinha das camadas médias e ele, em determinado momento, arrumava uma namorada ou um namorado, tinha que casar.
Querendo ou não, casavas. Querendo ou não, tinha esse filho. Querendo ou não, comprava-se um cachorro. Querendo ou não, a família se organizava para comprar uma casa. Querendo ou não, se aposentava. Querendo ou não, tinha esse neto. E querendo ou não, morria-se. e aceitava-se que a morte estava perto. Nesse modelo de sociedade hoje, onde os dituais de passagem foram pelo ralo, a gente quer inventar, ou quer ter liberdade de inventar a sua própria jornada.
E aí, como disse muito bem Cris e você, Ju, quando você inventa a sua própria jornada, você cria um descompasso social onde cada um vive no seu próprio ritmo. Cada um vive na sua própria lógica. Cada um acha que só porque Natal é um jantar, você pode fazer... Natal, 13 de fevereiro, se você quiser. Você pode fazer o teu ano novo, né? 15 de março. Você pode inventar que teu aniversário pode ser em qualquer momento.
Eu queria dizer para você que está me ouvindo que você não pode. Não pode por quê? Por que rituais, né? Rituais têm um papel importantíssimo, como você colocou, citando o coreano que ninguém sabe dizer o nome, mas outros tantos antropólogos, eles têm um papel decisivo de organização do tempo.
O calendário, olha que interessante, você estava citando o exemplo da igreja. O calendário que a gente vive hoje, que parte do pressuposto, que dezembro, depois vem janeiro, que dia 24 é o momento que a gente para, tem a Páscoa, o Natal, o Carnaval.
Chama-se calendário gregoriano. E é gregoriano por quê? Porque depois, no século XVI, quando houve a expansão marítima, e... você foi obrigado a lidar com gente que vivia outras lógicas de tempo diferente da sua, a igreja ficou com um problema grande, que a igreja queria ser grande.
E ela queria estar em todo lugar. Então em cada momento tinha o festejo do nascimento de Jesus, em cada momento tinha a sua Páscoa, em cada momento tinha o seu carnaval, a sua caresma. E aí o Papa chegou e disse, olha, não vai dar assim não. A gente vai ter que organizar aqui uma passagem do tempo mais ou menos do mesmo jeito para a gente conseguir gerar comunicação. Quando você inventa o seu próprio tempo, você está descolado da sociedade. Rituais colam a gente na sociedade.
Rituais constroem sentido para a tua vida e para a vida em sociedade. Rituais te permitem construir canais de diálogo com o outro. Então não abra mão dos rituais. E não inventem seus rituais. Na minha família é assim. É óbvio que na sua família você pode fazer pequenas variações. para dar conta de sofrer menos. Então, sei lá, talvez a ceia na sua casa é mais cedo, na ceia na casa do outro é meia-noite, o outro gosta de cear duas da manhã, tal bem, não sei se não tem problema.
Agora, você não pode inventar que o Natal vai ter outro dia só porque você é o diferentão da feira. Não, não pode. Porque a sociedade cobra da gente esses pactos que os rituais nos dão.
Agora, Ale, eu queria voltar nisso que o Michel estava falando, que é todo mundo é chato e você é legal. E eu vejo nisso uma ambivalência maluca, porque durante o tempo todo... nessa sociedade que a gente está se comparando com zilhares de outras pessoas que todas têm a vida melhor que a gente, a gente se acha ruim.
Então, assim, eu não sou a mãe que eu queria, eu não sou a profissional que eu queria, eu tô sempre aquém, eu tô sempre me cobrando, eu tô sempre achando que eu não sou boa o suficiente. Por que que chega o Natal e eu acho que eu sou tão boa que eu não posso me relacionar com... Que ambivalência é essa? Porque elas são duas faces da mesma moeda neoliberal, que é a moeda que transforma questões estruturais em culpabilizações individuais.
Então, do mesmo jeito que o neoliberalismo diz assim, você é o dono da sua vida, do seu sucesso, basta você imprimir força, foco e fé e você vai chegar aonde você quiser. Então, cria esses alecrins dourados, né? Obviamente, isso tem cor, isso tem classe, isso tem gênero, né? Tem tudo isso no meio. Ele também cria essa sensação. de que eu sou o único responsável pela viabilização de qualquer papel social. E esses nossos papéis identitários, eles são psicossociais.
Por isso que a gente precisa fazer essas releituras todas e tem tanta gente falando de racismo estrutural, machismo estrutural e a gente falar de estrutura. como uma parte da composição da identidade que influencia a nossa vida. O nosso sofrimento não é interno. O nosso sofrimento é psicossocial. A gente sofre porque a gente está dentro de um laço social.
A gente sofre porque a nossa sociedade é uma sociedade específica neste tempo histórico e que produz um determinado tipo de sofrimento. Então, essa mãe que se cobra... ela está ligada a uma concepção sócio-histórica do que esperar de uma mãe. O que a Vera e a Connelly diz lindamente lá no Manual Antimaternalista, livro que ela escreveu esse ano.
E na hora em que a gente tem o alecrim dourado que quer criar o seu próprio Natal no dia 12 de março, a gente também tem essa sensação de descolamento do coletivo. Então, esse individualismo do nosso tempo é uma praga, é uma coisa que a gente tem que ficar batendo nisso.
até a gente poder voltar a um momento em que a gente possa construir um sentido de pertencimento à vida que seja mais coletivo e menos individualista. Porque nós somos seres coletivos, nós... a nossa individuação, que é esse processo da gente se descobrir e assumir quem se é, ele acontece dentro do coletivo e não fora. Não é um processo de descolamento do coletivo, é um processo de diferenciação dentro de uma sociedade.
em conflito, em tensão, em colaboração, em comunhão, em conjunção com uma sociedade. Então, eu acho que esse papo nosso aqui é maravilhoso, porque a gente está assim... retornando a uma concepção de que um tanto das misérias do nosso tempo e das dores do nosso mundo atual tem a ver com essa invenção louca de que a gente pode simplesmente se descolar.
da cultura e da sociedade, ter uma vida como se, aspas nesse, como se, se a gente tivesse a condição de ser apenas um indivíduo. Isso não existe. O Michel... Acho ótimo o que o Ale está trazendo para já encaminhar um pouco para essa discussão de que ritual mesmo a gente está falando, para não se perder, porque quando...
o Bil Shuham, esse coreano aí que a gente não sabe falar o nome, faz essa crítica que vocês estão fazendo e fala, então como que a gente pode recuperar os rituais? Ele fala de algumas coisas que... Eu falo, é por isso que as pessoas ficam tão frustradas, né? Porque, por exemplo, olha, primeiro você tem que, não é pertencimento, então você tem que precisar revalorizar a comunidade. Por que, Michel? Porque a pessoa passou o ano inteiro sem falar com a avó.
Vai no Natal, não tem conexão nenhuma com aquelas pessoas que estão no Natal e fala, gente, o Natal é uma porcaria, não precisa. Ano que vem não venho. Não é, Michel? Claro. Então, assim, adianta, minha pergunta pra você é, adianta eu cair de paraquedas no Natal e falar, gente, isso não tem sabor nenhum, isso não tem gosto nenhum. O Michel disse... que o ritual ia fazer, ia acontecer na minha vida, fez nada. Tô tintindo nada, Michel. A culpa é sua.
Então... Mas, Ju, tem uma coisa que é super importante que a gente não pode esquecer, é que os rituais, eles são quase mágicos. A gente precisa acreditar neles pra funcionar. Toda eficácia não tá dada por si só. ela precisa você ter alguma pá de crença para que ele possa acontecer. É o que o pessoal da igreja diz que você precisa de fé.
Você precisa ter alguma fé no ritual, né? Isso não quer dizer que você tem que estar completamente de acordo com o ritual. Só pra ficar claro aqui, acho o Natal chatíssimo, acho insuportável, mas não há um ano que eu não passo com a minha família. Por quê? Porque acho que ele tem uma função importantíssima no reforço dos vínculos familiares, sobretudo nessa dimensão que a gente está esquecendo numa sociedade cada vez mais individualista, que é a dimensão do amor.
E o amor é aquilo que sobra depois do ódio. Eu acho que isso é uma frase importante. O amor é o que sobra depois do ódio. Eu odeio muita gente, né? Odeio às vezes quando sou obrigado na casa da minha mãe. Odeio quando sou obrigado a participar naquela ceia que o tio chato tá lá. Odeio participar de um monte de coisa que não faz sentido pra mim, mas eu tô lá.
E por que o Natal é importante? Porque você odeia aquelas pessoas ao longo do ano, e você odeia elas, inclusive na noite de Natal, mas quando você acorda no outro dia, sobrou amor. E é isso que faz elas diferentes do teu porteiro. Ou é isso que faz elas diferentes, sei lá, do presidente da república. Ou é isso que faz elas diferentes, gente conhecido na rua. É que depois que você odeia, você continua amando.
E aí o ritual é importantíssimo nesse processo, desde que ele cobre o conte com o teu comprometimento com aquele grupo. Então os rituais são sociais. Essa que é uma palavra importante que a gente não pode esquecer. Eles são rituais sociais e eles cobram o teu vínculo de pertencimento e interação com aquele grupo para além deles, senão eles não comunicam.
Então o ritual é um momentinho numa narrativa um pouco maior. Eu brincaria que ele é um episódio de uma série. Ele não é um longa. Ele é um episódio numa série. Então é isso, tem dia que você vai lá, tem ano que é bom, tem ano que é chato, tem ano que é chatíssimo, tem ano que é só chato, tem ano que você fala assim, esse ano foi até legal, tem ano que é triste porque alguém morreu, tem ano que é alegre porque as crianças apareceram.
Tem ano que o Papai Noel não veio porque está bêbado. Mas ele tem anos. Ele é um episódio numa série. A vida é série. Eu gostava de pensar antigamente que a vida era um longa. A vida não é mais um longa. A vida é série, né? Ela tem temporada 1, temporada 2, episódio bom, episódio chato, episódio terrível, episódio que empolga, episódio que não empolga. E o Natal é um desses episódios, né? De passagem. Onde a gente reforça.
E por que eu sou um defensor ávido do Natal? Porque eu acho que ele consegue gerar uma mistura entre tipos de amores que a gente facilmente não encontra no nosso dia a dia. Os sociólogos vão dizer, e aí o Zimmel é um nome importante nesse jogo,
que a gente tem três tipos de amores que rondam as nossas interações sociais. Um é o que ele chama de amor coeso, que é o amor do reforço do vínculo. O outro é o amor cristão, que é aquele que você é obrigado a aceitar o outro independente de como ele seja e quem ele seja. E o terceiro é o amor erótico, que você usa o outro como ponte para dar conta dos seus próprios desejos e das suas próprias ambições. E o Natal consegue juntar dois amores num momento só, que é o amor coeso e o amor cristão.
onde você está lá para aceitar os outros como eles são e está lá para reforçar vínculo, para você passar na rua, olhar para o vizinho e entender. O vizinho não é um fontenelle alcoforado, que é o que eu sou. E ele é diferente, outro tipo de gente. Gosto dele, ele é legal, aceito conviver com ele, mas ele não é um fontenelle alcoforado. Então, ele merece benefícios e deveres que são diferentes do que os fontenelle alcoforado me devem.
E das que eu devo a eles. Isso é importantíssimo. Sem Natal não dá pra fazer um negócio desse. E sem Natal não dá pra inventar família. Não é à toa que todo mundo sabe bem aqui, e a gente já tem idade pra isso, que tem um momento tensíssimo. para qualquer família, que é quando a matriarca morre. A matriarca morre e ela coloca em risco esse Natal, porque ela é o vínculo de fomentação dessa família. Mas ela é facilmente reinventada, esse ritual.
sobretudo quando as crianças chegam, que elas dão o ânimo de você ter que atualizar para aqueles que chegaram ali. O que é essa família? O que é ser fontenelle? O que é ser alcoforado? O que a gente come nesse dia? Que hora que a gente janta? A gente troca presente antes? É amigo oculto ou é inimigo oculto? É rouba-rouba ou a gente não troca nada? Aqui nos fontenelle alcoforado tem árvore?
Tem guirlanda na porta? A gente contrata Papai Noel? Isso nos faz diferente dos outros. Então esses momentos são importantíssimos, né? E a gente não pode abrir mão disso porque a gente esfacela, família. Quando você não passa Natal com os seus... você esfacela um pouco da sua família. Isso não quer dizer que você é obrigado a fazer festa para 60. Mas assim, você tem que ter consciência quando você está escolhendo o seu Natal com quem que você quer reforçar esse vínculo.
Quem inventa a sua própria família, depois que os filhos chegam, vai passar na casa da sogra, sei lá o quê, está tudo certo. Você não é obrigado a passar com todo mundo. Mas você tem que saber que aquele vínculo que está dado está sendo reforçado com aqueles que estão na festa contigo. E é com esse que a gente vai seguir o próximo ano. Tem um sentido de intenção nisso que você está falando, né, Michel? Consciência e intenção. Cris, é só intenção.
Não é à toa que quem inventa. Outra coisa que eu escuto sempre. Ah, eu acho o Natal uma festa capitalista. É. É mesmo. Porque quem diz pra você que chegou o Natal no Rio de Janeiro no passado era líder magazine. que tinha uma propaganda que gritava, já é Natal na Líder Magazine. Mas hoje que não tem mais Líder Magazine, quem inventa o Natal é o shopping. É o Natal que diz pra você, é o supermercado, dizendo, já tem Panetone Natal.
Já tem decoração no shopping, é Natal. Sem isso, a gente não sabe quando é que começa o Natal. E qual é o grande drama que eu vi nas minhas pesquisas? O espírito natalino, quando o shopping, ou o comércio, ou o supermercado, ou a propaganda na televisão, diz pra você que é Natal, ele coloca uma intenção que é só sua. Que é como é que eu trago esse espírito natalino aqui dentro pra minha casa.
É, porque o desafio de trazer isso que tá rondando na rua, na televisão, pra dentro da minha casa, é de cada um de nós. Então tu vai montar árvore pra tentar ver se o símbolo captura o espírito natalino. Você vai comprar o Peru de Natal, o Chester que...
pula o termômetro, você vai pensar se vai ter amigo oculto, vai passar amigo oculto insuportável no grupo da família, pra ver se a gente captura, intencionalmente, esse espírito natalino, que tá aí, rondando pela sociedade, pro nosso grupo social. Então, é só intenção. Não se faz Natal sem intenção. Tudo que você falou nas dificuldades que a gente passa, então por que? Por que isso é tão difícil? Eu ainda estou e eu acho que vou permanecer com muito tempo na companhia do Eduardo Lui.
que encantou todo mundo aí na passagem na Flip, também teve no Roda Viva, recomendo muito essa entrevista. E no livro dele, Mudar Método, que pra mim é o meu preferido, você tá lá lendo aquela dor daquela pessoa pra criar a própria identidade e se descolar da família.
Com muita intenção de fazer isso. E você vai acompanhando aquele sofrimento. Eu acho que para qualquer pessoa que tenha mudado de status social. Ou que tenha sido muito excluído da sua família. Sofre junto com o Eduardo. Eu acho que ele tem uma capacidade de passar. passar limpo o sofrimento, que é inacreditável, pra chegar no final, nas últimas duas páginas, e o maldito falar da saudade daquilo que te fez sofrer.
Porque é nessa ambivalência que a gente vive. Então, a saudade do cheiro de gordura do frango que eu odiava. A saudade do meu pai chegando bêbado, daquele cheiro que eu lembro. Então... Eu acho que essa tradução do que te compõe como identidade não passa pela...
felicidade necessariamente. E essa perseguição que a gente está pela felicidade, acaba nos excluindo de experiências que são formativas da identidade. Dito isso, Ale, como é que... gente faz para suportar essa ritualização que passa também por exclusão que passa também por dor Por que eu infringiria isso a mim mesmo? E eu acho que Michel coloca de uma maneira importante, enquanto passagem do tempo, formação de identidade, vínculo, grupo. Mas como que eu faço psíquicamente?
para dar conta deste momento com tamanha divisão cultural, política e identitária que existe hoje no grupo. O Natal passou a ser a metonímia da nossa sociedade, porque ele representa o momento político. depois dessa ascensão da extrema-direita no mundo e também no Brasil. Porque foi essa a virada cultural... política que fraturou as instituições sociais e que fraturou as relações porque o advento está em uma liberdade para odiar a ponto do outro não precisar existir.
Então essa sensação de exclusão, ela chegou nas pessoas em um lugar muito mais profundo, muito mais abissal. Então eu localizo no outro uma pessoa que... pensa determinada coisa que se eu vou lá no âmago disso que ele pensa, ele me quer morto. Então tem muita gente fazendo essa associação e fazendo... rupturas, por exemplo, dentro da família. Se você, por exemplo, entra na comunidade LGBT e você estuda as narrativas familiares deles...
de 2016, 2018 para cá, eles vão falar isso. Eu cortei essa pessoa da minha família porque ela defende uma posição... subjetiva no mundo que não coaduna com a minha existência, com a existência de pessoas como eu. Então esse conceito de exclusão, ele passou a ser um conceito muito mais difícil. de ser negociado depois em cenas de reparação, porque está muito mais evidente. esse tipo de ódio social que estava mais encapsulado, mais amortecido, mais mascarado. Então...
As noites de Natal estão representando essa tensão social com muita ênfase. Pegando carona em tudo isso que o Michel lindamente falou sobre a importância dos rituais. Eu acho que é o seguinte, primeiro, os rituais não podem servir como justificativa para a expressão de violência. Isso não é um ritual significativo. A sua forma de valorizar um ritual pode ser também marcar uma ausência. Marcar uma ausência porque você acha...
que a maneira com que o seu grupo social está lidando com aquilo é violenta para você, significa dar importância para esse ritual. A falta é uma coisa muito importante. para o psiquismo humano. Então, na hora que você marca ali uma falta, você está passando uma mensagem e está ajudando a construir aquele ritual. A sua ausência... Como naquela música, naquela mesa está faltando ele.
Estava faltando naquela música pela morte, pela saudade, mas agora naquela mesa está faltando ele porque ele não quis ir, porque ele se sente violentado. Então essa ausência está marcando um debate. E isso pode ser o início da construção de um outro ritual que reconheça a importância dessa pessoa, que reconheça a importância da existência dela entre nós, que faça com que...
o coletivo se mobilize para acolher minimamente aquela pessoa. Ou pode ser simplesmente um momento de ruptura. Agora, como o Edward Louis, quando a gente rompe... A gente não esquece. A gente só leva dentro. E leva dentro todas as dores. E uma das dores é o que o Bequior... Compôs para Elis cantar, minha dor é perceber que apesar de termos feito tudo o que fizemos, ainda somos os mesmos e vivemos como os nossos pais. Nós ainda queremos esse amor, nós ainda queremos esse encontro.
Então a gente pode ter inclusive raiva de ter saudade do arroz com passa, raiva de ter saudade do cheiro desse pai alcoolista. Mas isso é parte do que nós somos. Eu particularmente acho que um ritual maduro, seja ele de Natal, de Ano Novo, é um ritual em que a gente possa conversar sobre as ambivalências. em que elas possam ser minimamente colocadas, sabe? Em que a gente não tenha que performar o tempo inteiro, que a gente está, assim, irradiante por estar ali.
Em que a criança, por exemplo, sabe aquela hora que a criança fica com tédio do Natal? e que aí a mãe da criança fica desesperada porque o tio tá olhando pro menino e criminalizando a mãe por ela ter um filho que tem tédio do Natal? Esse tipo de cena, por exemplo, eu acho que a gente pode transformá-la numa cena em que a gente possa construir ali juntos. O que vocês acham da gente fazer uma brincadeira aqui?
e envolver as pessoas nesse sintoma que está acontecendo ali agora, porque aí eu acolho essa ambivalência. Eu não tenho que maquiá-la para o ritual acontecer daquele jeito enrijecido. Quando a gente acolhe a ambivalência do humano, tudo fica mais interessante, tudo fica mais colorido. Não é à toa que o Edward Louis, que a Annie Hernot, que Machado de Assis... que Tamar Vieira Júnior, é que essas pessoas constroem essa narrativa que não é linear sobre o humano.
E elas seduzem tanto a gente, porque nós nos identificamos com isso. Então, quanto mais a gente puder colocar... Essa existência dessa ambivalência nos nossos rituais, eles vão ser mais leves, eles vão ser mais prazerosos, eles vão ser mais criativos e eles vão ser mais conectivos entre as pessoas. Ai, Ale, mas não dá um bom post de Instagram. Nada do que você falou. Não sei.
Nada disso que você falou dar um bom post no Instagram. Porque agora, nesse fim de ano, a gente vai ver milhões de pessoas enlouquecidas fazendo compras. Pensando na decoração. Porque eu mesma... Não vou dizer que não.
Vários? Nós também. Já tava lá comprando um presente diferente pra cada um, fazendo lista, fazendo... Preocupada. Como que é, Cris? A tábua de frios, perfeitamente instagramável. Aquele Natal comprou... roupa das crianças tudo penteada, tudo cheirosa, foto de família e aí a pessoa fica surtadaça bem neurótica pensando em Conter a imagem. Por isso que eu falei de forma e essência. Você fica tão preocupada com o que o Natal precisa ter para que você tenha o ritual.
Porque isso é mais fácil você transmitir na comunicação, Michel, por isso que eu falei de forma e essência. O que Natal tem que ter? Aí, no visual, você consegue fazer o checklist e você fica correndo que nem um doido e cada vez a lista aumenta mais pra você ter o Natal perfeito. Aí eu vou ter tudo isso que o Michel falou. Aí eu vou ter essa...
no coração essa alegria, essa completude, esse sentimento de pertencer, essa noção de tempo, tudo isso vai vir pra mim. É mais difícil eu fazer isso que o Alexandre falou, Michel. Eu concordo, Ju, só que a gente precisa dessas coisas também para inventar o Natal. Igual você precisa da bandinha e da roupa pequena no carnaval. Igual você precisa não comer carne na sexta-feira santa.
para poder enfrentar aquele dia religioso. A gente precisa das coisas para inventar a gente, isso não é menor. Então, você precisa, às vezes, de uma árvore de Natal. Se você tem filhos pequenos... E o processo de entendimento da ritualística do Natal se dá por esse símbolo. Você precisa, às vezes, pagar um Papai Noel ou fazer seu filho acreditar um Papai Noel? para ele entender que aquele é um momento de um dia diferente, onde ele pode pedir presente.
e receber o presente desde que ele tenha tido um bom comportamento. Isso aí é aula pra caramba. Isso inventa uma sociedade, isso é reciprocidade pura. Isso vai inventar o princípio da moralidade, que vai dizer que todos nós, desde que nos comportemos, vamos ser
É agraciado. Você demora um bocado de ano pra entender que não tem nada a ver uma coisa com a outra. Você pode se comportar muito bem que a vida não é justa. Ela não te estará presente sempre. Mas eu acho que em termos de formação isso é decisivo. Sabe por quê? Porque a gente gosta muito de separar estética de ética. E estética é ética. A gente visualmente constrói alguma coisa e cada coisa que a gente constrói diz pra gente uma forma de estar no mundo.
Então, não estou dizendo para ninguém aqui enlouquecer com carpaccio ou com as castanhas ou as nozes com casca ou sem casca. ou se você comprou todo um jogo de guardanapos que dá conta do vermelho, que é o tema do Natal. Não é nada disso. Agora eu estou querendo chamar a atenção que o Natal precisa ser marcado como um evento diferente mesmo. Não é a comida de todo dia. Não se inventa Natal com a comida de todo dia.
Não importa a sua classe social. Biscote e champanhe. Você pode comer feijão e arroz e farinha todo dia. Mas no Natal, você vai ter que botar alguma coisa diferente. Você pode beber água todo dia. Você não tem dinheiro pra comprar Vovclicô? Tome sidra. mas você precisa de alguma coisa que dê essa ideia de que você está vivenciando um contexto distinto, porque senão a gente não entende, a gente precisa de cenário.
para poder ter outras atuações. E a gente precisa de outras atuações para inventar nossa subjetividade também. Então, eu acho que o meio do caminho é a solução. Não é para você inventar... o Natal do Macaulay Clark na sua casa, sei lá como é que aquele homem, que moço que nem sei nem falar o nome, o Esqueceram de Mim, da vida, mas eu acho que você precisa de algum momento que dê pra você alguma coisa de que aquele é um jantar diferente.
Não é um jantar como os outros. Eu quero complementar com uma coisa bem rápida que eu sei que a gente está com o tempo contado aqui. O cuidado é a parte comportamental do amor. Boa. É a parte operativa do amor. Quando eu faço essa preparação milimétrica, cuidadosa, obsessiva, que eu me enlouqueço, que eu saio correndo, eu estou cuidando. de demonstrar, de deixar claro nesse ritual que eu amo, que eu me preocupo, que eu cuido da sua presença vendo.
através dessa ornamentação, dessa comida, dessa bebida, que esse cuidado todo com a ambiência e com o preparo dessa festa significa, do ponto de vista...
operativo, comportamental, eu te amo. E ainda mais do século XXI, que é o século mais acelerado que nós já vivemos até aqui, em que a gente está o tempo inteiro dizendo que a nossa vida está uma loucura e que a gente não tem tempo para nada, ganha ainda mais relevância para o outro perceber o nosso amor quando a gente disponibiliza tempo e energia para fazer o cuidado de alguma cena que vai construir um encontro humano. Isso nesse século tem muita importância, cada vez mais.
Eu, como mineira, eu acho que... Eu também, hein? Né, Lê? Esse lugar que eu te amo, logo eu te alimento. Eu faço uma comida pra você, né? E eu falo... Vai fazer desfeita, não vai comer não, mas não vai repetir. Essa demonstração do... Eu preparei isso com muito afeto. Eu queria que tivesse minimamente bonito, minimamente gostoso. E aí, eu acho que...
Realmente, a gente consegue fazer isso em qualquer estrutura social mínima. Porque tem gente que, infelizmente, não vive com dignidade por conta de questões econômicas. Mas eu acho que qualquer pessoa que... Nasceu na base da pirâmide, vai lembrar do sabor do biscoito champanhe do Natal, porque só vai ter no Natal biscoito champanhe. Então, são esse investimento, esse investir de afeto com o que você tem.
E aí, eu fico muito em dúvida sobre o quanto a gente também pode ceder para estar no lugar onde a gente foi feito, do barro que a gente foi fabricado. E o quanto a gente pode criar o próprio Natal com as pessoas que são importantes para a gente. E eu acho que isso é uma análise de cada um. Tem aquele tio que eu sei que falou aquilo em 2018, mas a gente tá em 2024, será que ele ainda vai falar a mesma coisa e a gente tem dado pouco benefício da dúvida, né? Eu já vou muito armado.
para qualquer encontro, porque eu estou esperando o pior do outro. E provavelmente o outro está esperando o pior mesmo. Então, eu acho que para quem tem condição emocional de deixar pelo menos o kimono um pouquinho aberto, sabe kimono frouxo? que você pelo menos possibilita que o outro pegue, talvez seja o momento de fazer isso. E aí vai muito de uma análise individual do quanto marcar a presença na ausência.
dói mais em você do que nos outros, constrói mais do que destrói, vai precisar de uma análise muito individual e de um gesto em direção à flexibilidade. Ah, esse ano eu não dou conta, mas eu estou provocado a refletir sobre isso. Ou, não, realmente eu não dou conta, eu rompi de vez, mas eu estou criando aqui o meu próprio ritual com pessoas que...
que me respeitam, a gente tem diferença, mas me respeitam. O convite é para pensar na ritualidade como um processo de identidade, de grupo, de coesão, e é claro. acima de tudo, de afeto, essa troca de afeto. Dito isso, convido vocês para o Natal aqui em casa, né, que tem muita coisa...
Mas eu acho que essa conversa é muito importante e eu estou muito feliz de vocês terem trazido pontos tão bons para a gente refletir e principalmente conviver com essa ambivalência. Não vai ser feliz. Nem é para ser feliz, gente. É para ser interessante. É para funcionar. Nossa, que lindo. Eu adorei essa ideia do kimono aberto, sabia? Adorei. Porque é coração e luta juntos, no mesmo corpo. É bem isso. Adorei isso. Que bonito.
Gente, muito obrigada. Eu me lembrei de vários natais gravando com vocês e fico muito emocionada, com muita gratidão pelas pessoas que...
que botaram esse cuidado que o Alexandre falou. Eu tenho na minha família, tanto por parte de mãe como por parte de pai, grandes mulheres que fizeram grandes natais e que tiveram muito esmero e que fizeram... todas as costuras de relacionamento para aparar as arestas e... remendar as relações para que o Natal fosse possível, com grande custo pessoal, é trampo mesmo, a gente já falou isso em vários mamilos.
Quantas mulheres na minha vida fizeram esse trabalho para que o Natal fosse possível em termos logísticos, de alimento, de essa noite especial, da magia e também das relações, né? O quanto eu sou grata. por ter tido esse enorme privilégio, quantas memórias boas eu tenho do Natal e quanto eu ainda posso fazer para criar para os meus filhos, né? Então, assim, acho que já me enlouqueci muito, Michel, e pelo jeito...
com essa autorização, continuarei me enlouquecendo por mais anos. Pensa que é só um dia, né? Eu sou essa pessoa, a Cris sabe, eu sou essa pessoa que eu faço assim... muitos dias antes. Então, sim, eu compro guardanapo de pano, sim, eu compro uma louça especial. E eu? Eu sou dessas pessoas, eu vim dessas tias, eu vim dessas avós e eu carrego...
essa tradição com muito orgulho. E eu, como uma boa amiga, alivio pra ela, de jeito nenhum, acho tudo maravilhoso e falo, dobra a posta, amiga, tá ficando tudo lindo. Vai lá e depois manda foto pra mim. Manda foto que eu quero ver tudo. Mas eu queria levantar só essa pergunta para os homens que estão ouvindo o programa, que é existiria Natal na sua casa se não tivesse uma mulher fazendo? Então, imbuído dessa resposta, participe.
Ajude, não fique sentado na sala esperando tudo ficar pronto. Se ofereça e você vai ouvir não, tá? Você vai ouvir não, porque ela já está nessa dinâmica há muitos anos. Então, ela sabe fazer. Lute pelo seu espaço na cozinha, como você tem lutado. pelo seu espaço no mercado de trabalho. É um ritual, então ele tem que ser construído juntos. Gente, muito obrigada. Temos um programa, Dona Cris?
Temos. Anda logo que o Peru já está pronto. Já subiu o termômetro. Gente, obrigada. Vocês são de casa. Estejam sempre conosco a cada ano. Eu amei. Obrigada. Eu também. Me senti muito honrado. Mais uma vez. Eu também. Eu também.